A origem da crença na realidade de um mundo dos espíritos, com os quais se pode comunicar, remonta à própria história do ser humano. Modernamente, a crença nos espíritos e na comunicação com estes está relacionada ao nascimento do Espiritismo, movimento que eclodiu em meados do século XIX, nos Estados Unidos. (Brown, 1972; Nelson, 1969; Podmore, 1902/1963)
A origem do movimento espírita está relacionada com ocorrências em uma suposta casa mal-assombrada, ocupada pela família Fox, na cidade de Hydesville, no início do ano de 1848. A família começou a ouvir misteriosos ruídos que pareciam sair dos móveis e das paredes de madeira da pequena casa onde moravam. Os ruídos pareciam se manifestar com maior freqüência na presença das irmãs Kate e Margaretta, que logo descobriram que poderiam se comunicar com eles. (Broughton,1991, p. 57) Ao estalarem os dedos ou bater palmas, ouviam o misterioso som, que parecia ser inteligente, pois repetia as batidas na quantidade exata. Logo foi desenvolvido um sistema de comunicação, baseado em respostas simples, como “sim” e “não”, associadas a quantidades pré-estabelecidas de pancadinhas que os espíritos deveriam usar. Alguns meses após o início das comunicações, a família esteve, temporariamente, hospedada na casa de parentes. Os ruídos acompanharam a família, que acabou por desenvolver uma novo sistema de comunicação, agora baseado na letras do alfabeto. Uma grande quantidade de espíritos supostamente se comunicavam através das meninas e muitas pessoas tentavam estabelecer contato com parentes falecidos por meio das irmãs Fox. Alguns participantes das sessões promovidas pelas irmãs Fox descobriram que eles também podiam produzir comunicações do mesmo tipo. Às pessoas que tinham a habilidade de canalizar essas comunicações foi dado o nome de médiuns.
Uma grande controvérsia cerca as ocorrências denominadas espíritas. Houve quem levantasse a hipótese de que as irmãs Fox podiam produzir ruídos por meio de manipulação das articulações dos dedos dos pés. De fato, uma comissão de médicos verificou que as garotas tinham tal habilidade e, quarenta anos após as ocorrências em Hydesville, Kate e Margaretta declararam publicamente que realmente produziram tais ruídos fraudulentamente. Mas, logo depois, voltaram atrás, afirmando que foram pressionadas a mentir. (Broughton, 1991, p. 59)
Testemunhas oculares, no entanto, afirmaram que as respostas eram muito mais rápidas do que se poderia esperar das manipulações das articulações das meninas. Além disso, essas pessoas afirmaram que muitas das informações dadas pelos supostos espíritos eram corretas. (Gauld, 1968)
Rapidamente, esse movimento religioso, denominado Espiritismo, se espalhou pelos Estados Unidos, atravessou o Atlântico e atingiu a Europa. Pessoas com maior facilidade de se comunicarem com as supostas entidades se tornaram médiuns profissionais. Cada vez mais praticantes aderiam ao movimento. Novas formas de comunicação foram desenvolvidas: mesas girantes ou “falantes”; escrita automática; incorporação, através da qual o suposto espírito se comunicava com os consulentes diretamente, pela voz dos profissionais espíritas; levitações de objetos e de pessoasdesaparecimento e aparecimento de objetos; fotografias “espirituais”.
Foi na França que o movimento espírita encontrou sua organização. A assim chamada “codificação” do Espiritismo se deve ao educador francês, Hyppolyte León Denizard Rivail, ou Allan Kardec, seu pseudônimo. Kardec parece ter encontrado sentido nas diferentes comunicações feitas pelos supostos espíritos em distintas localidades. Como resultado de seu trabalho, escreveu vários trabalhos. (Kardec, 1944a, 1944b, 1944c, 1944d, 1944e, 1955).
A base da doutrina espírita kardecista está na reencarnação e na comunicação entre os vivos e os espíritos dos mortos por meio dos médiuns, e na existência do perispírito. (Hess, 1991, p. 15). A reencarnação estaria apoiada na crença de que o ser humano tem como missão e aspiração o desenvolvimento espiritual que seria conseguido através de consecutivas encarnações. O conceito de reencarnação está ligado a dois princípios: à lei da causa e efeito (ou karma) e ao livre-arbítrio. A lei de causa e efeito estaria presente não apenas na vida material, mas regeria a vida moral e espiritual de todos os seres humanos. A toda ação corresponderia uma reação. Assim, a cada ato humano, corresponderia uma contrapartida moral. O livre-arbítrio estaria relacionado diretamente à idéia de desenvolvimento e, por isso mesmo, à da reencarnação.
“As almas são criadas simples e ignorantes, isto é, sem ciência e sem conhecimento do bem e do mal, mas com igual aptidão para tudo. A princípio, encontram-se numa espécie de infância, sem vontade própria e sem consciência de sua existência. Pouco a pouco o livre-arbítrio se desenvolve, ao mesmo tempo que as idéias” (Kardec, 1944b, p.196)
O perispírito é definido por Kardec como
“um envoltório semi-material do Espírito. Entre os encarnados serve como liame ou intermediário entre o Espírito e a matéria. Entre os Espíritos errantes constitui o corpo fluídico do Espírito” (Kardec, 1955, p. 25)
Em síntese, a proposta do Espiritismo, seria a de que o ser humano é criado por Deus sem discernimento e tenderia à evolução espiritual, conquistada em suas diversas encarnações.
1.1 - O Espiritismo e as manifestações dos espíritos
Desde o ponto de vista do Espiritismo, como já foi exemplificado pelo caso das irmãs Fox, muitos fenômenos extra-sensório-motores são interpretados como ação de espíritos. Allan Kardec analisou casos em que as manifestações físicas ambientais pareciam ser inteligentes. Assim eram as comunicações com as supostas entidades espirituais que traziam informações não apenas com sentido mas, muitas vezes, que pareciam depender de conhecimentos que apenas o falecido possuia. Kardec raciocinava logicamente, de acordo com os conhecimento que dispunha na época. Tentava descartar a fraude e as causas físicas conhecidas. (Kardec, 1995 p. 50) Mas é importante lembrar que estamos falando de uma época em que os conhecimentos a respeito da psiqué humana, sobretudo da existência de um funcionamento inconsciente, ainda estavam por ser completamente construídos. Foi, por exemplo, apenas em 1900, cerca de cinqüenta anos após os primeiros trabalhos de Kardec, que Freud lançaria A Interpretação dos Sonhos, em que Freud desenvolve a noção de inconsciente de forma mais completa. A obra de Kardec é anterior aos estudos sobre dissociação realizados pelos seus patrícios, o Dr. Pierre Janet e o Dr. Jean Martin Charcot, entre outros. (Ellemberger, 1970)
A ausência de conhecimentos sobre o funcionamento inconsciente e suas manifestações, entretanto, não pode ser responsabilizada, em todo, pelas conclusões de Kardec. Há razões sociais que poderiam também ter influenciado, ou criado as condições ambientais, para que o Espiritismo eclodisse. É importante lembrar que a crença nos espíritos não nasceu com as manifestações de Hydesville, muito menos com o trabalho de Kardec. Antecedentes históricos demonstram que já havia um trabalho em torno da sistematização de uma doutrina baseada na existência e na ação dos espíritos dos mortos. Emmanuel Swedenborg, um sueco contemporâneo de David Hume e Voltaire, além de ser amigo de Imanuel Kant, que combinou uma carreira de cientista e visionário e estabeleceu as bases dessa doutrina. A seita swedenborguiana ativa naquele momento serviu como solo fértil para a semente espírita. Também o mesmerismo[4], que dava aos estados alterados de consciência grande importância, pode ser considerado como importante nesse contexto. (Beloff, 1993, p. 39) O “estado magnético”, espécie de alteração de consciência a que os pacientes eram submetidos, foi uma alavanca importante para o Espiritismo, na medida em que alguns sujeitos, enquanto “magnetizados”, pareciam entrar em contato com uma realidade diferente daquela em que viviam enquanto despertos. Alguns desses pacientes, antes da explosão do Espiritismo, diziam que podiam entrar em contato com os espíritos e deles obter conhecimentos, enquanto submetidos ao “sono magnético”. O caso mais conhecido e documentado é o de Andrew Jackson Davis, de Poughkeepsie, no estado de Nova Iorque. A partir de 1847, ele editou nada menos do que trinta e quatro edições em menos de trinta anos, de “Os Princípios da Natureza”, obra alegadamente inspirada por espíritos. (Davis, 1847)
Além do ambiente preparado pelo swedenborguianismo e pelo mesmerismo, algumas circunstâncias em que o mundo ocidental vivia em meados do século XIX pode ter facilitado o rápido alastramento do Espiritismo. Esperava-se muito mais da ciência do que ela poderia oferecer. O projeto da ciência moderna em prover bem estar foi, pelo menos aparentemente, questionado. A saída religiosa parecia ser uma alternativa ao pessimismo em relação ao futuro. Mas essa saída, ainda que religiosa, não aconteceria através de uma religião baseada nos mesmos preceitos recusados pelo iluminismo a emergente. O Espiritismo surgiu com uma proposta inovadora: uma religião, baseada em fatos e na pesquisa científica dos mesmos. Uma proposta conciliatória entre os antigos dogmas católicos e protestantes e os novos avanços da pesquisa científica. A influência de idéias científicas sobre o pensamento espírita é demonstrável, sobretudo nas noções de causa e efeito, e de perispírito e reencarnação, pilares da doutrina espírita. A Física oferecia a base do princípio de causa e efeito material, transportado para o Espiritismo como causa e efeito moral. Também da Física, em sua então recém descoberta do magnetismo, surgiu a noção dos corpos fluídicos, adaptado pelo Espiritismo como perispírito. E, finalmente, a noção de reencarnação, parece ter sido acomodada a partir da teoria da evolução das espécies de Charles Darwin.
2- Espiritismo no Brasil
Muitos freqüentemente proclamam que o Brasil é o país mais espírita do mundo. Por exemplo, o apresentador do programa de cultura espírita “E a Vida Continua...”, transmitido pela Rede Mulher, afirmou: “O Brasil é o país mais espírita do mundo”. Alegou que as pesquisas revelam que cerca de vinte milhões de brasileiros admitem sua adesão ao Espiritismo. Mas a quê o termo Espiritismo se refere? Ao Espiritismo Umbandista, ao Espiritismo Candoblecista, ao Espiritismo Kardecista? De fato, tal distinção se faz necessária, não apenas porque há diferenças fundamentais entre tais religiões, mas porque o próprio apresentador faz tal distinção. Para ele, o Espiritismo é o Kardecista. As demais religiões que também mantêm a crença na ação dos espíritos dos mortos sobre o mundo dos vivos nada teriam de espiritismo. Interessa-nos saber que cerca de vinte milhões de brasileiros professam abertamente a fé no Espiritismo Kardecista, fora os praticantes da Umbanda, do Candomblé, da Quimbanda, do Batuque, da Macumba, entre outras, todas elas marcadas pela presença, em nosso mundo, de supostas entidades que oferecem seus conhecimentos para que seus simpatizantes vivam melhor.
A posição do apresentador do programa de televisão, ao diferenciar Espiritismo Kardecista dos demais “Espiritismos”, representa em parte, a “arena de debates” a que se refere o antropólogo americano Dr. David Hess (1991), ao descrever a presença dessa religião no Brasil. Para ele, o Espiritismo não pode ser estudado isoladamente, como se tivesse emergido e se desenvolvido sem interlocutores que representaram seu território de ocupação. Assim, o Espiritismo apenas poderia ser compreendido em se reconhecendo seu relacionamento com outras religiões, com a Medicina - sobretudo a Psiquiatria - com as Ciências Sociais e com a Parapsicologia brasileira, para se estabelecer os jogos de força e as tendências próprias que o Espiritismo desenvolveu no Brasil.
O grande número de espíritas, sejam eles de qual designação for, é suficientemente importante para despertar o interesse para a pesquisa de todos os aspectos que cercam as experiências humanas pelas quais passam os praticantes. De fato, tem havido um crescente interesse acadêmico sobre o Espiritismo, sobretudo a partir dos estudos realizados pela antropóloga Dra. Maria Laura Cavalvanti (1983), que realiza investigações sobre o Espiritismo brasileiro desde uma abordagem fenomenológica.
Apenas para situar o estado atual do estudo do Espiritimo brasileiro, serão apresentados, sumariamente, os principais desenvolvimentos teóricos e empíricos realizados na tentativa de compreender tal religião em nosso meio.
A posição da comunidade médica brasileira sobre o Espiritismo parece acompanhar os acontecimentos históricos relacionados a esta religião no Brasil. A perseguição feita aos espíritas durante governo do Presidente Getúlio Vargas parece ter legitimado a posição da comunidade médica, francamente contrária ao Espiritismo. Por exemplo, durante as décadas de 1920 e 1930, a Liga de Higiene Mental considerava o Espiritismo como um problema de saúde mental. (Costa, 1976) O Dr. Murillo de Campos e o Dr. Antônio Xavier de Oliveira, médicos que integravam a liga, escreveram sobre o Epiritismo e outras religiões mediúnicas como um problema social. (Ribeiro e Campos, 1931; Oliveira, 1931) Durante esse período, muitos centros espíritas foram fechados. (Hess, 1991, p.157) A legitimação científica da repressão ao Espiritismo com o argumento de que a mediunidade era um sintoma psicopatológico parece ter sido mantida pela posição dos primeiros psicanalistas brasileiros a se interessarem por essa religião. Em O Negro Brasileiro, Artur Ramos (1940) fez uma psicanálise das religiões mediúnicas brasileiras e comparou o transe[5] espírita às patologias mentais.
Do ponto de vista sociológico, Cândido Procópio Ferreira de Camargo, com o seu livro Kardecismo e Umbanda (Camargo, 1961) foi um dos primeiros a investigar o Espiritismo. Camargo sugere a existência de um continuum entre as diferentes formas de mediunidade encontradas no Kardecismo e na Umbanda. Haveria uma grande quantidade de religiões que se encontrariam entre os extremos opostos representados por essas tendências. Os opostos recusariam a proximidade entre si, mas as tendências pertencentes ao campo central reconheceriam elementos de ambos os lados. Já para a antropóloga Maria Laura Cavalcanti, a posição de Camargo é infundada já que ele aplica um modelo externo para compreender e dar um sentido aos diferentes grupos, enquanto que o mais adequado seria verificar como os diferentes grupos vêem a si mesmos. (Cavalcanti, 1983)
Coube, sobretudo, a Roger Bastide (1967) e a Melville Herskovits (1958) situarem a mediunidade em um contexto social, descaracterizando-a como resultado de problemas mentais. Não se pode deixar de lembrar que a mesma posição é defendida pelo psiquiatra espírita Pedro Mundim, que utiliza informações da Psicanálise e da Antropologia para sustentar sua posição. (Mundim, 1985)
Do ponto de vista religioso, o Espiritismo é interpretado como uma ação de “espíritos imundos” ou do próprio “demônio” pela Igreja Universal do Reino de Deus e como um perigo pela visão de alguns representantes do Catolicismo. (Quevedo, 1973; Kloppenburg, 1960; Aresi, 1975) Quevedo Kloppenburg e Aresi concordam que o Espiritismo seja um perigo, mas afirmam isto com base não apenas na Psiquiatria, na Psicologia ou na Teologia. Afirmam que a Parapsicologia já constatou a anormalidade que o Espiritismo promove em seus praticantes.
Os espíritas, por sua vez, se defendem de tais rotulações, afirmando que a postura dos cientistas e dos religiosos é estreita, os primeiros por não reconhecerem a veracidade da fenomenologia espírita, e os últimos por distorcerem os resultados das pesquisas parapsicológicas com o propósito de fazer um ataque ao Espiritismo. Os espíritas afirmam que a Parapsicologia comprovou a existência de capacidades espirituais no ser humano, o que, de certa forma, apoia a hipótese da sobrevivência após a morte.
O trabalho de Fátima Regina Machado (1996), demonstra que a Parapsicologia tem sido utilizada como instrumento religioso no Brasil. Esse estudo revela que católicos e espíritas fundamentam suas posições religiosas com alegados conhecimentos parapsicológicos que, na realidade, não são definitivos.
As pesquisas sobre esse tema são ainda em número reduzido e enfatizam o Espiritismo desde o ponto de vista Médico e das Ciências Sociais. Apesar de importantes, as contribuições não são suficientes para abarcar a riqueza da fenomenologia espírita. Um aspecto também importante do Espiritismo é a experiência mediúnica como fenômeno psicológico e parapsicológico. E aqui as perguntas são tantas quanto a falta de respostas: há características psicológicas semelhantes entre os diferentes médiuns? Haveria alguma explicação da mediunidade do ponto de vista da Psicologia ou da Psiquiatria? As mensagens mediúnicas constituem-se em provas da sobrevivência após a morte? Quem são os agentes intelectuais das mensagens mediúnicas: os próprios médiuns ou os espíritos dos mortos? Como explicar o conteúdo das mensagens atribuídas aos espíritos, principalmente quando elas se referem a informações que são desconhecidas dos médiuns?
Independentemente da questão da normalidade dos praticantes do Espiritismo ou da utilização que espíritas fazem dos conhecimentos da Parapsicologia, talvez seja importante verificar quais as implicações da ESP para a compreensão mais abrangente de alguns dos fenômenos do Espiritismo.
3- Mediunidade, sobrevivência e ESP
O médium, desde o ponto de vista do Espiritismo, é aquele que tem a capacidade de ser mediador entre o mundo dos vivos e o mundo dos mortos. No Espiritismo Kardecista, é também chamado de “aparelho” e no Espiritismo de Umbanda e de Candomblé, de “cavalo”, termos que revelam o aspecto intermediário do médium. É importante que não se confunda a figura do médium com a do xamã. Este último entra em contato com o mundo dos espíritos dos seus antepassados, recebe deles orientação e retorna com informações que transmite ao seu povo. Os médiuns espíritas são transmissores “surdos”, podendo ser inclusive totalmente inconscientes das mensagens que, por seu intermédio, os espíritos transmitem.
Há uma grande variedade de tipos de médiuns, de acordo com as habilidades que possuem, caracterizando uma específica forma de mediunidade. Há os que são psicógrafos, porque os espíritos se serviriam deles para se comunicarem via escrita automática. Há os que são videntes, por terem a capacidade de ver e, muitas vezes, ouvir, os espíritos presentes e transmitir as mensagens que são por eles ditadas. Há os médiuns curadores, através dos quais os espíritos agiriam no sentido de levar atendimento aos assistentes que sofrem de males orgânicos ou espirituais. Há os médiuns de efeitos físicos, de quem os espíritos usariam parte da força física para fazer mover objetos ou realizar qualquer outra alteração física no ambiente.
Em qualquer que seja o tipo de mediunidade, o fundamental é que, a partir do médium, os espíritos se manifestam por meio da comunicação de mensagens. Tais mensagens, freqüentemente, são demandadas por pessoas que sofreram a perda de um ente querido, que anseiam por uma sua comunicação. Recorrem aos médiuns psicógrafos, como o famoso psicógrafo brasileiro, recentemente falecido, Francisco Cândido Xavier (1943, 1944 e 1968), ou aos médiuns videntes, para, por meio deles obterem notícias de seus amados.
Há relatos de pessoas que ficaram convencidas da veracidade da comunicação não apenas pela crença que têm na continuidade da existência após a morte, mas, pela semelhança entre a personalidade e conhecimentos do ente falecido e o conteúdo das mensagens mediúnicas. Há casos em que informações conhecidas apenas por um dos membros da família e pelo falecido, aparecem na mensagemmediúnica. De acordo com os espíritas, ito traria uma confirmacão da possibilidade de comunicação com os espíritos desencarnados. Algumas vezes, os espíritos transmitem, por intermédio dos médiuns, informações que apenas a pessoa morta tinha consciência. Por exemplo, uma dívida que deveria ter sido saldada, mas que, por ocasião de sua morte não pode levá-la a cabo. Há também casos de pessoas que receberam alguma comunicação mediúnica de fatos que aconteceriam apenas no futuro. Tais fenômenos mediúnicos dizem respeito ao conteúdo das mensagens supostamente recebidas diretamente do médium.
Há ainda uma outra categoria de médiuns, que não foi citada acima, que reforça ainda mais a crença na comunicação dos espíritos dos mortos: a mediunidade de incorporação. Nesse tipo de mediunidade, o médium “empresta” seu corpo aos espíritos. Estes, por sua vez, falam, gesticulam, e emitem impressões que muitas vezes se adequam às do falecido. Suas recordações parecem vívidas, suas emoções se mostram as mesmas em relação aos temas tratados, assim como seus desejos, angústias e linguajar são fiéis aos peculiares ao morto, enquanto era vivo.
Como compreender tais fenômenos? As teorizações de cunho puramente psicológico, relacionadas à cisão da personalidade, não são suficientes para abranger o conteúdo das mensagens. Elas são fundamentais para a compreensão parcial da forma de manifestação do fenômeno. A personificação, por exemplo, poderia ser entendida através de mecanismos inconscientes relacionados à ação dos complexos, no sentido junguiano do termo. Para o Dr. Carl Gustav Jung (1902/1993), os complexos seriam conjuntos de informações inconscientes que estariam ativas e se organizando, independentemente da consciência. Um complexo, quando estruturado, poderia ganhar a consciência, provocando o fenômeno da divisão de personalidade. Este fenômeno, de tipo dissociativo, poderia estar na base da mediunidade, mas parece bastante limitado quando a consciência dá espaço a uma personalidade independente e desconhecida da personalidade do médium. É importante mencionar que a explicação psicológica de C. G. Jung é uma entre muitas outras existentes. Ronaldo Alves Pereira (1992, p. 130) afirma que há, pelo menos, três abordagens para se comrpeender o fenômeno em questão: a psicopatológica, a antropológica e a etnopsiquiátrica.
“Citarei um exemplo bastante conhecido para ilustrar esta afirmação. Um ‘psicopatologista’ pode facilmente encontrar uma desordem mental ao diagnosticar, por exemplo, a personalidade de Hitler. Porém, a perspectiva do antropólogo pode ser a de se detectar como Hitler obteve sucesso ao manipular mitos culturais antigos e instituições sociais da Alemanha; ou ainda de descrever e analisar as circunstâncias nacionais e internacionais que levaram Hitler, como indivíduo (seja doente mental ou não), a obter apoio e legitimidade do povo alemão (seguramente, isto se deve ao uso da força e da propaganda, mas isto não é tudo). Uma terceira perspectiva, a do etno psiquiatra, é uma tentativa de combinar as duas visões anteriores, interpretando a Alemanha de Hitler como uma ‘sociedade enferma’”. (Pereira, 1992, p. 130)
Mas, a questão fundamental aqui não é a forma de manifestação do fenômeno, mas seu conteúdo. Em relação ao conteúdo das mensagens, os parapsicólogos se dividem, basicamente, em duas vertentes: uma que defende a hipótese de que as capacidades parapsicológicas, principalmente a ESP, seria suficiente para explicar tais ocorrências; e outra que defende a possibilidade de uma real comunicação por parte de entidades espirituais dado que a massa de informações demonstradas pelo médium, além da personificação a que está submetido, ultrapassaria as capacidades parapsicológicas conhecidas. Aqueles que defendem a primeira hipótese, supõem a existência de uma capacidade parapsicológica além do comum, chamada “super-ESP” ou “super-psi”.
A controvérsia se mantém. Em 1993, durante a realização da conferência internacional sobre Parapsicologia e Tanatologia, organizada pela Parapsychology Foundation, o Dr. John Palmer, (1993) pesquisador do Institute for Parapsychology do Rhine Research Center, ao discutir tal questão afirmou:
“Não há muito progresso empreendido para resolver essa controvérsia. Uma premissa do presente trabalho é que este estado de ânimos é atribuível, em parte, à carência de desenvolvimentos teóricos suficientes nos dois lados. Isto é especialmente verdadeiro para a hipótese de super-psi, cujos defensores freqüentemente usam nossa alegada incapacidade em determinar os limites de psi entre os vivos como base para a alegação de que tal tipo de psi pode dar conta de qualquer que seja a evidência que os defensores da hipótese da sobrevivência proponham. Esta abordagem de que ‘tudo pode’ é infalseável e de pouco valor científico”. (Palmer, 1993, p.1)
O Dr. John Palmer expressa o estado inacabado da pesquisa parapsicológica relacionada à questão da sobrevivência que pode, perfeitamente, ser aplicada, por extensão, ao tema da mediunidade. A “carência de desenvolvimentos teóricos” a que ele se refere é fruto da pouca importância dada à questão nas últimas décadas, até mesmo pelos parapsicólogos. Mais preocupados com a constatação e análise dos fenômenos parapsicológicos, sobretudo em ambientes experimentalmente controlados, os parapsicólgos talvez tenham perdido parte do interesse que inicialmente dirigiu a Pesquisa Psíquica em seus primórdios. São, na verdade, raras as exceções de pesquisadores que se detiveram, recentemente à análise da mediunidade e da sobrevivência de forma sistemática. (Stevenson, 1987; Braude, 1993) Essas poucas exceções são louváveis, mas, de certa forma, são insuficientes para uma compreensão mais ampla dos fenômenos em questão. Mais pesquisas são necessárias. Há um campo fértil esperando para ser conhecido, sobretudo no Brasil, considerado o “maior celeiro de médiuns do mundo”. O instrumental metodológico da Parapsicologia é útil para estar ao lado da metodologia da Psicologia e da Antropologia principalmente.
O médium é um super-agente psi? As comunicações mediúnicas têm sua origem no insconsciente do médium ou da consciência do morto? Tendo a Parapsicologia encontrado evidências da existência da ESP entre os vivos, não poderia existir também a ESP entre vivos e mortos? Estas são algumas das questões abertas a respostas.
“A conclusão de nossa investigação de evidências empíricas para a sobrevivência é de que, apesar de haver muitas evidências interessantes, não há provas empíricas para elas. Nenhum dos dados que nós examinamos necessita de um agente desencarnado para ser explicado; de fato, há uma explicação naturalista pronta para cada caso em questão. Mesmo que os dados indiquem que deve haver alguma mente por trás do fenômeno, pode ser a mente de uma pessoa viva, mais do que a de um espírito.” (Edge, et al., 1986, p. 347)
Apesar dessa posição, o Dr. Hoyt Edge, na continuação, nos lembra, primeiro, que não sabemos se a ESP tem limites, já que mal saímos da fase de sua demonstração e, segundo, que os fenômenos típicos da mediunidade são muito mais espetaculares do que os obtidos em situação experimental pelos parapsicólogos, o que poderia ser indício de que alguma capacidade humana ainda não conhecida poderia estar atuando na mediunidade, ou mesmo que exista uma intervenção de espíritos sobre os médiuns. Essas duas observações nos revelam que o tema da mediunidade e da sobrevivência estão ainda em discussão. Novamente, mais pesquisas são necessárias.
“Não há dúvida de que a sobrevivência não foi ‘provada’, como explicação alternativa. Não se pode, entretanto, negar o fato de que há evidências empíricas interessantes que podem ser interpretadas corroboradoras dessa hipótese. Nós apenas podemos dizer que não sabemos se é a sobrevivência que está envolvida.” (Edge, et al., 1986, p. 347)
Os parapsicólogos se inclinam a aceitar a hipótese da sobrevivência e da comunicação com os espíritos como possibilidades longe de terem sido demonstradas. Na verdade, o problema fundamental está em reconhecer os limites da capacidade extra-sensorial. Se não conhecemos a extensão da ESP, como dizer que em tal ou qual circunstância ela não estaria envolvida? Por outro lado, o fato de a hipótese de sobrevivência e da comunicação com os mortos não ter sido demonstrada, não significa que isto não aconteça. O fato é que, cientificamente, isto não pode ser devidamente demonstrado, se é que existe.
Até que mais pesquisas sejam empreendidas no sentido de melhor definir os contornos dessa questão, cabe-nos um exercício de aplicação do que a Parapsicologia conquistou de conhecimentos. Mesmo que tais conhecimentos sejam ainda insuficientes para esclarecer totalmente a fenomenologia espírita, são ferramentas úteis para delinear uma abordagem possível para sua compreensão. Essa abordagem, que será sustentada na continuação deste capítulo, tem como premissa a aplicação dos dados obtidos pela Parapsicologia na análise de certas experiências humanas relacionadas à religião, em especial, ao Espiritismo. Este relacionamento com a religião se apresenta na forma de interpretações religiosas oferecidas pela cultura para essas experiências. Para o objetivo deste trabalho, alguns dados obtidos pela pesquisa parapsicológica, relacionados à ESP, serão aplicados a alguns fenômenos espíritas, visando a verificação da pertinência de tais dados para a compreensão mais ampla do Espiritismo. Serão apresentados, a seguir, alguns exemplos dessa aplicação.
Estados alterados de consciência e ESP no Espiritismo
Um dos aspectos que mais chama a atenção no fenômeno da mediunidade é a alteração de consciência pela qual a maioria dos médiuns passa durante o momento em que “trabalha” nas sessões. Como já foi visto, há médiuns que se permanecem inconscientes até o encerramento de seus trabalhos. Durante esse período, eles agem como se fossem outra pessoa já falecida que, com freqüência, parece manifestar conhecimentos com quais o médium supostamente jamais tivera contato.
Definir estados alterados de consciência é muito difícil, em primeiro lugar, porque há imprecisões semânticas quanto ao sentido de termos como “consciência normal” e “alteração de consciência”. Em segundo lugar, nosso conhecimento geral sobre a consciência é ainda muito pobre. De qualquer forma, um
“estado alterado de consciência para um dado indivíduo é aquele em que ele sente claramente uma mudança ‘qualitativa’ em seu padrão de funcionamento mental, ou seja, ele sente não apenas uma mudança quantitativa (mais ou menos alerta, maior ou menor imaginação visual, vívido ou opaco, etc.), mas também que alguma qualidade ou qualidades de seus processos mentais estão ‘diferentes’. ” (Tart, 1990, p. 1)
A atitude em relação aos estados alterados de consciência é muito diferente em culturas e ambientes distintos. No meio científico ocidental, sobretudo no meio médico, as alterações de consciência são vistas como sintomas de psicopatologias. Entre as tradições orientais, como o Zen ou o Yoga, os estados alterados de consciência são estados bem vindos, necessários e buscados. Tais sistemas tradicionais de compreensão, interpretam as alterações de consciência como um meio de obter a iluminação.
No Espiritismo kardecista, ou mesmo na Umbanda e no Candomblé, o estado alterado de consciência do médium seria o sinal de que um suposto espírito está se manifestando. O assim chamado fenômeno da incorporação, seria uma “mudança temporária de consciência”, que ocorreria em maior ou menor grau, correspondendo a uma maior ou menor consciência do médium.
Seja como for, relata-se que o médium, durante sua alteração de consciência, tem a capacidade de manifestar informações às quais nunca teve acesso. Este fato legitima a crença de que o médium apenas intermedia o mundo dos vivos e dos mortos. O espírito seria a fonte de informação.
Entretanto, a Parapsicologia investiga evidências de que o ser humano não adquire informações apenas por meio de seus sentidos físicos conhecidos. Os estados alterados de consciência, como o sono, a hipnose, a meditação, a técnica ganzfeld, o relaxamencto neuro-muscular, como visto no capítulo anterior, parecem ser psi-condutivos, ou seja, parecem facilitar a manifestação da psi, sobretudo da ESP. Seria lícito pensar, portanto, que o médium, durante o período em que está com sua consciência alterada, aumentaria sua chance de transmitir informações corretas acerca de uma pessoa falecida, porque teria acesso a informações que estariam disponíveis na mente de pessoas que conheceram o (a) falecido(a) enquanto ele/ela viva.
De que maneira o estado alterado de consciência facilitaria a ESP do médium? Os estados alterados de consciência parecem facilitar a emergência da informação presente no inconsciente à consciência e não necessariamente a “retirada” de informações da mente das pessoas vivas. (Honorton, 1977) Aceita-se que a ESP se dê em dois momentos. Um primeiro momento seria o responsável pela “transmissão” da informação da mente de uma pessoa à mente do “receptor”, no caso o médium. Num segundo momento, a informação sairia do inconsciente e chegaria ao consciente do receptor. Os estados alterados de consciência poderiam ser responsáveis pela facilitação do segundo estágio.[6]
“Como está meu filho?” O papel social do médium e a ESP
Qual a demanda dos peregrinos que buscam os grandes médiuns no Brasil? A maior parte das pessoas que recorrem a um médium pela primeira vez busca informações acerca de entes queridos recentemente falecidos. Desesperados, procuram uma palavra que os console, uma prova da sobrevivência de seu amado. Para a pessoa que sofre, a mensagem psicografada ou a comunicação direta com o falecido por meio da incorporação constituem essa prova requerida. Neste sentido, o médium corporifica não apenas o espírito de um morto, mas o desejo dos consulentes: o desejo humano de transcender à morte física.
Milhares de pessoas aflitas recorrem aos médiuns diariamente. Por meio de consultas diretas ou indiretas, como a leitura de um livro psicografado, esses homens e mulheres que se “comunicam com os espíritos”, levam a esperança da continuidade da existência e reconduzem o consulente sofredor de volta às suas atividades cotidianas. Este retorna, mas transformado. Apesar de ter tido um contato próximo com a realidade da morte, agora sente renovadas suas esperanças na sobrevivência, graças ao trabalho do médium.
O médium, portanto, tem uma função social bem definida e culturalmente fundamental. Ele sabe de sua responsabilidade. Passou por uma escola de médiuns, filiada à Federação Espírita, onde aprendeu a usar todos os seus talentos para a realização de suas tarefas: levar informações e consolo aos que a eles recorrem.
Esse trabalho não visa verificar como surge um médium, ou seja, quais os sinais que demonstraram essa sua característica. Entretanto, dois fatores podem ser explicitados: a necessidade de ajudar o próximo em seus momentos de sofrimento e o fato de ter passado por alguma experiência que é interpretada como sendo sinal de sua capacidade de estar em contato com o “mundo dos espíritos”. Tais experiências podem ser as mais variadas, indo desde uma sensação de déjà vu[7], até a ataques histéricos ou epiléticos, experiências de ESP, experiências de visão de supostas entidades e intuições. O tipo de sinal poderia definir o tipo de mediunidade. Assim, se a pessoa diz ter visto alguém já falecido, será encaminhada a desenvolver a sua “mediunidade de vidência”.
Seja qual for a forma da mediunidade que nele se manifeste, o médium deve utilizá-la para servir ao desenvolvimento do seu próximo. Esse fator pode facilitar a manifestação da ESP. Como já foi visto, a ESP parece estar relacionada à satisfação de necessidades orgânicas e psicológicas do ser humano. O médium poderia, dessa forma, utilizar seus recursos parapsicológicos, no afã de satisfazer sua necessidade em auxiliar o consulente. Some-se a isto o fato de que ele está, via de régra, sob um estado alterado de consciência, o que potencializaria suas possibilidades de manifestar efetivamente sua ESP.
Este panorama mostra que a ESP, assim como outros talentos do médium, como a capacidade de escrita, de pintura, de oratória, de cura (Krippner e Villoldo, 1976; Villodo e Krippner, 1987), estaria sendo utilizada por ele de forma inconsciente, para realizar tarefas social e culturalmente importantes, relacionadas ao bem-estar de seu grupo e da comunidade. Para o espírita, o médium representa a prova viva de que vale a pena continuar confiando na sobrevivência após a morte, sobretudo quando vem acompanhada de alguma informação sobre seus entes queridos falecidos.
“Eu acredito nos espíritos”: Crença, cultura e ESP
Um aspecto relacionado ao anterior, é o sistema de crença baseado na possibilidade de comunicação com os espíritos e na intervenção destes em nosso mundo. O Espiritismo sustenta que os espíritos podem coabitar nosso espaço físico e agir sobre ele, executando alterações físicas sensíveis, com o propósito ou de se fazerem presentes ou de assustarem os vivos que estão ao seu redor. A conhecida expressão alemã poltergeist, que significa espírito bricalhão ou barulhento, demonstra a crença popular em tais ações. Mas, o fato de compartilharmos com os espíritos dos mortos o mesmo ambiente, poderia ter uma outra conseqüência: o contato mental entre nós e eles. Assim, teríamos acesso a informações às quais jamais tivemos acesso direto.
Esse sistema de crença pode ser o terreno fértil para que a ESP possa ser utilizada. Como já foi visto, a aceitação da possibilidade de ocorrência da ESP parece desempenhar um papel fundamental para a performance de uma pessoa em provas de laboratório. Pessoas que aceitam a ESP têm melhores pontuações em seus testes parapsicológicos do que as pessoas que afirmam que a rejeitam. (Schmeidler e McConnell, 1958/1973) Possivelmente, essa variável possa ser estendida a situações culturalmente determinadas, ou seja, ainda que os elementos de um grupo cultural não saibam o que significa a ESP, nem por isso deixam de utilizá-la, sobretudo quando seu sistema de crenças permite pensar que espíritos seriam os responsáveis pelas informações que lhe surgem na consciência. Na verdade esse sistema de crença poderia mesmo facilitar a ocorrência de ESP. (Zangari e Machado, 1996)
Uma questão que se coloca freqüentemente no meio parapsicológico é a importância de se verificar como psi ou, especificamente, a ESP se manifesta em conformidade com o sistema cultural. Isto significa que há uma tendência em Parapsicologia de não se levar em conta apenas os dados obtidos por meio da pesquisa experimental, quando a pessoa que passa pela experiência está fora de seu ambiente natural. A ESP deveria estar relacionada a fatores culturais que compõem a construção da consciência dos indivíduos. Cada cultura parece achar espaço, dentre suas múltiplas manifestações, para a expressão da ESP, principalmente entre as suas manifestações religiosas. Por que religiosas? Porque, como foi visto no primeiro capítulo, a ciência mantém uma longa tradição de negação de experiências humanas imcompatíveis com suas postulações teóricas. A religião parece ser o reduto de manifestações humanas que ainda não foram devidamente incorpordas pela ciência.
Por outro lado, não seria lícito afirmar que a ESP, por exemplo, deixaria de ser um dos elementos fundamentais que constituem o Espiritismo, caso fosse aceita amplamente pela ciência. Os sonhos não deixaram de constituir inspiração aos espíritas em relação à crença de que o espírito se desloca do corpo durante a noite, por causa do desenvolvimento das várias teorias sobre os sonhos que a Psicologia viu frutificar. Nem se deixou de utilizar técnicas tradicionais, chamadas talvez erroneamente de alternativas, para o tratamento de males físicos e mentais, por mais que a Medicina tenha alcançado êxito em suas terapêuticas. A raiz da questão talvez esteja no fato de que a razão é apenas um dos elementos da constituição mental do ser humano. Como teorizou o Dr.Carl Gustav Jung (1902/1993) o pensamento, que utiliza a razão para suas operações, está ao lado da intuição, da sensação e do sentimento, elementos estruturais de nossa mente. A ciência não supre toda nossa necessidade, já que não é apenas de razão, de análise, de síntese que o ser humano “se alimenta”. A ESP está relacionada a essas outras facetas da experiência humana.
“Um espírito me tocou”: Formas de ESP e Espiritismo
As experiências de ESP, pelas quais homens e mulheres passam, são culturalmente interpretadas, como vimos. Detalhemos esse aspecto, agora tendo como pano de fundo as concepções do Espiritismo. No capítulo anterior, verificamos que são basicamente quatro as formas através das quais a informação extra-sensorial emerge à consciência: sonhos realistas; sonhos simbólicos; alucinações e intuições.
Os sonhos são uma das principais vias de acesso de informações do inconsciente ao consciente e se consituem na via de acesso mais freqüente de conteúdos extra-sensoriais. Aos sonhos nos quais uma informação extra-sensorial se revela simbolicamente dá-se o nome de sonhos simbólicos ou não realísticos, enquanto que os sonhos que apresentam o conteúdo extra-sensorial de forma clara, são chamados de realísticos.
O Espiritismo adota uma doutrina dualista em relação ao corpo e ao espírito. O espírito poderia se desprender do corpo físico, desdobrando-se ou projetando-se para além dos limites do organismo. O deslocamento do espírito seria o responsável pelos sonhos. Durante a noite, os espíritos se ausentariam, mantendo contato com outros espíritos e com dimensões físicas diferentes da nossa. O desprendimento do espírito poderia fazer com que ele tomasse contato com informações que o indivíduo não teve de outra forma, em estado de vigília. Essas informações poderiam ser lembradas quando o sujeito acordasse, porém poderiam ser parcialmente esquecidas ou deformadas por conteúdos já existentes na mente dessa pessoa, o que demarcaria a diferença entre sonhos simbólicos e sonhos realísticos.
No caso das alucinações, cujo conteúdo pode ser extra-sensorial, o Espiritismo sustenta que a pessoa que, por exemplo, vê, ouve, ou se sente tocada por uma alguém já falecido, realmente teve contato direto com esse suposto espírito. Tratar-se-ia de um caso de vidência, o que no Espiritismo significa uma capacidade mediúnica de ter contato sensorial com os espíritos dos mortos.
As intuições que têm conteúdo extra-sensoriais são interpretadas, no Espiritismo, como uma forma de mediunidade mental, ou seja, um tipo de contato telepático com um espírito que transmitiria informações a um médium.
Essas interpretações espíritas talvez sejam uma maneira de dar sentido às experiências extra-sensoriais pelas quais, como vimos, mais da metade da população vivencia. A cultura propicia tais interpretações e a pessoa pode se reconhecer nelas. O pouco estudo, divulgação e importância dados às pesquisas parapsicológicas poderia ser uma das razões do florescimento dessas interpretações. Do ponto de vista da pessoa que passa pelas experiências citadas, talvez não haja muitas possibilidades de interpretação além da espírita em nosso ambiente. Além dela, há a interpretação médica ou psicológica tradicional, que interpreta tais experiências, muitas vezes, como sintomas de psicopatologias. Dessa forma, as interpretações espíritas aparecem como uma solução entre o vazio de explicações científicas, que por vezes nega a existência das mesmas, e a interpretação psicopatológica. Além disso, a interpretação espírita, por estar ligada a pressupostos de ordem religiosa e doutrinária, leva a pessoa que vivenciou uma dessas experiências a uma compreensão não apenas da experiência em questão, mas a um entendimento a respeito de sua vida como um todo.
Conclusões preliminares
Com esses exemplos de aplicação de conhecimentos parapsicológicos às experiências interpretadas como espíritas, pudemos verificar: a) a importância que as experiências parapsicológicas representam no seio do Espiritismo; b) a importância da compreensão dos mecanismos parapsicológicos (da pesquisa parapsicológica) para o entendimento das experiências espíritas; c) o mecanismo de interpretação espírita acerca de experiências extra-sensoriais; d) a importância das interpretações espíritas em relação às experiências extra-sensoriais para a pessoa que vivencia uma experiência de tipo extra-sensorial; e) algumas conseqüências, no plano da constituição da religião espírita, da não aceitação das experiências extra-sensoriais pela ciência clássica; f) o papel da cultura em disponibilizar interpretações para as experiências extra-sensoriais; g) o fato de os estados alterados de consciência, o desejo de ajuda que move os médiuns, a importância do sistemas de crenças que inclui a possibilidade de ESP, são facilitadores das manifestações extra-sensoriais em ambiente espírita.
Uma conclusão pode ser tirada a partir da análise empreendida: experiências extra-sensório-motoras se constituíram em importante fator para o nascimento do Espiritismo e para sua continuidade. O cientista interessado em analisar a religião espírita de forma abrangente deve ter conhecimentos básicos acerca da investigação parapsicológica, já que seria limitado compreender o Espiritismo sem levar em conta fatos fundamentais de sua existência e manutenção. A Parapsicologia, ao lado da Sociologia, da Psicologia, da História, da Antropologia, deve se constituir em importante ciência para a realização da abrangente análise proposta. Este aspecto será melhor delineado no próximo capítulo.
Referências Bibliográficas
ARESI, A. (1975) Homem Total: Dinamismo, Educação, Desajuste e Parapsicologia. São Paulo: Loyola.
BASTIDE, R. (1967) Le Spiritisme au Brésil. Archives de Sociologie des Religions. 24: 3-16.
BRAUDE, S.E. (1993) Multiple personality and survival: Further reflections on the case of Sharada. Trabalho apresentado na 36ª Convenção Anual da Parapsychological Association em Toronto.
BELOFF, J. (1993) Parapsychology: A Concise History. London: The Athlone Press.
BROWN, S. (1972). The Heyday of Spiritualism. New York: Hawthorne.
CAMARGO, Cândido Procópio Ferreira de. (1961) Espiritismo e Umbanda. São Paulo: Pioneira.
CAVALCANTI, Maria Laura. (1983) O Mundo Invisível. Cosmologia, Sistema Ritual e Noção de Pessoa no Espiritismo. Rio de Janeiro: Zahar.
COSTA, Jurandir Freire. (1976). História da Psiquiatria no Brasil. Rio de Janeiro: Documentário. Cruz Monclova, Lidio.
DAVIS, A. J. (1847). The Principles of Nature, her Divine Revelations, and a Voice to Making. London: John Chapman.
EDGE, H.L., MORRIS, R.L. PALMER, J. & RUSH, J.H. (1986) Foundations of Parapsychology. New York: RKP
ELLEMBERGER, H.F. (1976) El Descubrimento del Inconsciente. Madrid: Gredos.
GAULD, A. (1968). The Founders of Psychical Research. New York: Schocken.
HERSKOVITS, Melville. (1958) The Myth of the Negro Past. Boston: Beacon Press.
HESS, D. (1991) Spiritists and Scientists. Ideology, Spiritism, and Brazilian Culture. Pennsylvania: The Pennsylvania State University Press.
HONORTON, C. (1977) Psi and Internal Attention States. In B.B.Wolman (Ed.), Handbook of Parapsychology. New York: Van Nostrand Reinhold, pp. 453-472.
JUNG, C. G. (1993) Estudos Psiquiátricos. São Paulo: Vozes. Trabalho publicado originalmente em alemão Zur Psychologie und Pathologie sogenanter okkulter Phänomene, em 1902.
KARDEC, A. (1944a) O Livro dos Espíritos. Rio de Janeiro: Federação Espírita Brasileira.
KARDEC, A. (1944b) O Evangelho Segundo o Espiritismo. Rio de Janeiro: Federação
KARDEC, A. (1944c) A Gênese. Rio de Janeiro: Federação Espírita Brasileira.
KARDEC, A. (1944d) Céu e Inferno. Rio de Janeiro: Federação Espírita Brasileira.
KARDEC, A. (1944e) O que é Espiritismo? Rio de Janeiro: Federação Espírita Brasileira.
KARDEC, A. (1955) O Livro dos Médiuns. Rio de Janeiro: Federação Espírita Brasileira.
KLOPPENBURG, B. (1960) O Espiritismo no Brasil: Orientação para os Católicos. Petrópolis: Vozes.
KRIPPNER, S. e VILLOLDO, A. (1976) The Realms of Healing. Millbrae, CA: Celestial Arts.
MACHADO, F. R. (1996) A Causa dos Espíritos: um estudo sobre a utilização da Parapsicologia para a defesa da fé católica e espírita no Brasil. Dissertação apresentada ao Programa de Ciências da Religião, PUC-SP.
MUNDIM, P. de O. (1985) Terapêuticas Espiritualistas (‘Nooterapias’) e Psicopatologia. Trabalho apresentado no 1ª Conferência Internacional sobre Interação Mente-Espírito-Matéria, 22-24 de julho, São Paulo.
NELSON, G. K. (1969). Spiritualism and Society. New York: Schocken.
OLIVEIRA, A. X. de. (1931) Espiritismo e Loucura. Rio de Janeiro: A. Coelho Branco.
PALMER, J. (1993) Toward a General Theory of Survival. Proceedings of International Conference of Parapsyhology Foundation. 1-32.
PODMORE, F. (1963). Mediuns of the 19th century (2 Vols). New Hyde Park, New York: University Books. (Trabalho original publicado como Modern Spiritualism, 1902.)
QUEVEDO, O.G. (1973) Ambiente e Influxo da Parapsicologia. Parapsicologia: Revista do Centro Latino Americano de Parapsicologia, 1, pp. 10 a 23.
RAMOS, A. (1940) O Negro Brasileiro. São Paulo: Nacional.
RIBEIRO, L. e CAMPOS, M. (1931) O Espiritismo no Brasil. Contribuição ao Seu Estudo Clínico e Médico-Legal. São Paulo: Editora Nacional.
SCHMEIDLER, G. R. E McCONNELL, R. A. (1973). ESP and Personality Patterns. Weistport, Conn.: Greenwood Press. (Trabalho originalmente publicado em 1958)
STEVENSON, I. (1987). Children who remember previous lives: A question of reincarnation. Charlottesville: University Press of Virginia.
TART, C.T. (1990). Altered States of Consciousness. New York: Harper Collins.
VOLLOLDO, A. e KRIPPNER, S. (1987) Healing States. New York: Fireside.
XAVIER, F. C. (1943). Nosso Lar. Rio de Janeiro: Federação Espírita Brasileira.
XAVIER, F. C. (1944). Os Mensageiros. Rio de Janeiro: Federação Espírita Brasileira.
XAVIER, F. C. (1968). E a Vida Continua.... Rio de Janeiro: Federação Espírita Brasileira.
ZANGARI, W. & MACHADO, F.R. (1996) Survey: Incidence and Social Relevance of Brazilian University Students’ Psychic Experiences. European Journal of Parapsychology, Vol. 12, 75-87.
[1] Este trabalho é parte de um dos capítulos de nossa dissertação de Mestrado “Parapsicologia e Religião: A importância da análise das experiências parapsicológicas para uma compreensão abrangente do fenômeno religioso”, apresentada no Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião da PUC-SP, em 1996. O autor quer expressar seu agradecimento ao CAPES pelo auxílio financeiro recebido para a elaboração da referida dissertação.
[2]Neste trabalho, estaremos utilizando de alguns termos que podem dar margem à dúvida. Assim, procuraremos, antecipadamente, definir de forma precisa a terminologia que será empregada.
Utilizaremos o termo Espiritismo como sinônimo de Espiritismo Kardecista, ou seja, a doutrina baseada nos escritos de Allan Kardec, que sustenta a existência de espíritos desencarnados (mortos, no sentido tradicional), que podem se comunicar com os espíritos encarnados (vivos, no sentido comum). Allan Kardec, deliberadamente,utilizou o termo Espiritismo para diferenciar sua doutrina de outras tendências religiosas espiritualistas. Ao nos referirmos às religiões que têm a mediunidade como fator fundamental em sua prática, referir-nos-emos às religiões mediúnicas, em cujo bojo se encontram não apenas o Espiritismo, mas a Umbanda, o Candomblé, a Macumba, entre outras.
Um último esclarecimento refere-se aos termos religião e espiritualidade. Por religião compreendemos a instituição religiosa, que organiza o sistema de crenças e práticas dos indivíduos. Portanto, religião, refere-se ao aspecto público da organização religiosa. Por espiritualidade, entendemos o aspecto privado, individual, subjetivo da vida religiosa. Assim, é possível que uma pessoa não faça parte de uma religião instituída, mas seja espiritualizada, ou seja, tenha uma vivência individual religiosa. Da mesma forma, poderemos encontrar pessoas que fazem parte de uma religião, mas que não são espiritualizadas.
[3] Não pretendemos apresentar os dados relevantes da pesquisa realizada sobre a percepção extra-sensorial. Os interessados em se aprofundar nesta matéria poderão valer-se de artigo nosso com Fátima Regina Machado, já publicado no Anuário Brasileiro de Parapsicologia, 1998: “ESP, Uma Breve Revisão e Algumas Reflexões”.
[4] Mesmerismo: movimento criado por Franz Anton Mesmer, que considerava os males físicos como o resultado da diminuição no organismo de uma substância física batizada de “magnetismo animal”. O processo de cura consistia em que o doente recebesse o magnetismo animal que seria doado por alguém que dele fosse possuidor em excesso, ou por meio de acumuladores de magnetismo, feitos a partir de imãs e material condutor. Os passes do Espiritismo são, claramente, uma versão das sessões magnéticas.
[5]Transe é um termo vago, geralmente utilizado como sinônimo de “estado alterado de consciência” dos médiuns.
[6] Termos como “retirada”, “transmissão”, “receptor”, usados nesse parágrafo, são resquícios de um tempo em que a ESP era teorizada como um processo parecido com a transmissão de rádio. A Teoria do Rádio Mental, como foi chamada pelo seu idealizador, o Dr. Leonid Vassiliev, foi rejeitada por falta de evidências de que a ESP seria limitada pelas mesmas variáveis que interferem sobre as ondas de rádio, como a distância, o tempo e as barreiras físicas. Em que pese a rejeição da teoria, os termos se popularizaram e são usados em larga escala pelos parapsicólogos, apesar de suas evidentes limitações.
[7] Déjà vu, do francês, já visto ou já vivido, é a sensação de já ter estado em um local ou passado por uma situação que está sendo vivida no momento. Há várias hipóteses científicas para o fenômeno do déjà vu, desde neurológicas, que sustentam que ele seria resultado de disfunções do lobo frontal direito, até hipóteses relacionadas a fatores psicológicos que afirmam que ele poderia ser o resultado de amnésias de curta duração.
(*) Publicado no Anuário Brasileiro de Parapsicologia-2002